Marlene Marques Ávila
Em março de 2003 chegamos ao Rio de Janeiro, para cumprir mais uma etapa de nossa vida acadêmica, fazer o doutorado. Eu estava deslumbrada, mais com a cidade maravilhosa, devo confessar, pela qual me apaixonei antes mesmo do avião aterrissar, vê-la de cima foi puro encantamento; que com o doutorado, pelo qual também me apaixonei, mas de forma mais gradual, à medida que me integrei na vida pulsante da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e conheci o corpo docente do Instituto de Medicina Social, formado por muitas estrelas principais, e diversos et al., ou seja, os demais colaboradores de um determinado (a) autor/autora.
Eu e duas amigas, Lucia e Ilvana, dividíamos um quarto em uma república de estudantes, exclusiva para moças, a maioria delas, de cidades do interior, que estudavam e/ou trabalhavam no Rio. Éramos as mais velhas do grupo de cerca de dezesseis hóspedes dividindo os espaços coletivos – cozinha, dois banheiros e sala de estar. Nem precisa dizer que, pela manhã, com todas precisando usar o banheiro, este era o espaço mais disputado da casa, em segundo lugar a cozinha, nós, pela graça divina, não precisávamos usá-la muito.
Mais ou menos dois meses depois que chegamos, a administradora da pousada fez uma reunião, onde pediu a presença de todas. O objetivo era esclarecer sobre as normas do local, um pouco tardiamente, nós achamos. A maioria das normas, na verdade, eram coisas que qualquer pessoa de bom senso dividindo espaço coletivo deveria observar, e já faziam parte da nossa rotina. Assim, transcorria tudo tranquilo na reunião, até que ela falou sobre bebida alcóolica ser terminantemente proibida. Ela nem terminou de falar e eu explodi em uma risada, foi impossível conter, e boa parte das meninas começou a rir também. A mulher olhava para nós sem entender qual a graça, precisei explicar.
– Veja, chegamos aqui há dois meses, e nós temos um ritual, uma vez ao mês, na noite de lua cheia, nós abrimos uma garrafa de vinho e vamos tomar lá em cima no terraço. Na primeira vez fomos eu, Lucia e Ilvana, mas na segunda vez algumas das meninas foram também. Contudo, nós não guardamos vinho aqui, a gente traz apenas uma garrafa na noite do uivo.
– Cristo, que uivo?
– Faz parte do ritual, a gente uiva pra lua cheia. Inventamos isso, acho que é como uma válvula de escape, um redutor do estresse, a gente sente muita saudade de casa, nos faz bem, entendeu?
– Não sei se entendi, mas e os vizinhos?
– A gente uiva baixo, a senhora recebeu alguma reclamação?
– Não, na verdade não.
– Pois então, nós vamos continuar nosso costume, está bem? Não se preocupe, é realmente só uma garrafa, dá nem dois goles pra cada uma, é uma forma de liberar a tensão, a gente está longe de nossa família, de nossa terra, é fácil não, viu?
– Tudo bem então, vou acreditar em sua palavra, uma vez ao mês, uma garrafa e nada de uivos escandalosos. Esse é o acordo, certo?
– Certíssimo! Não se preocupe, cumpriremos direitinho o regulamento. Assim demos o ponto final desta questão.
Situações divertidas aconteciam quando usávamos alguma palavra típica do nosso cearencês. Um dia pela manhã, bem cedo, percebi uma animação diferente na cozinha, e a voz de Lucia, em um tom mais alto que o normal:
– Uma caçarola, eu preciso de uma caçarola!
Me dirigi à cozinha contendo o riso, as garotas que lá estavam se entreolhavam, querendo ajudar, mas não sabiam que coisa vinha a ser uma caçarola.
– Meninas, ela quer uma frigideira. Aqui tem uma não tem?
– Ah, uma frigideira, tem bem umas três aí no armário, falou Lívia.
De outra feita, ao pegarmos um táxi, Ilvana indicou o trajeto ao motorista:
– Moço, arrodeie essa praça e pegue à direita.
O homem olhou para nós pelo retrovisor e perguntou de forma afirmativa.
– Vocês são do Ceará, não é?
Respondi prontamente:
– Oxente, como é que o senhor descobriu?
E-mail: marquesavilamarlene@gmail.com
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